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Homenagens, convivência e recordações (Tim Tones; F97)

17/06/2020 - Por rodrigo cortez
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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A profissão de Engenharia Agronômica é fascinante e grandiosa, mas em inúmeras ocasiões nos leva para longe de nossos locais de origem e de nossos familiares. Foi assim com meu pai, (Júlio Cortez, Berna, F69), que por opção, sonhos e oportunidades da vida, saiu de Ourinhos-SP e foi para Uirapuru- GO, a cerca de 1160 km de casa desbravar uma propriedade rural. Isso perdurou de 1983 até os dias recentes. Hoje, quem toca a propriedade é seu irmão, (Morcego, Antônio Cortez Filho, F-77).


Difícil os filhos ficarem contentes com o pai tão longe assim, e isto foi ponto crucial para eu não querer fazer ESALQ. Mas a vida dá voltas, e algumas nem precisam ser completas ou muito demoradas para mudar o cenário: em 1993 iniciei o curso de Engenharia Agronômica (F 97), e meu irmão Rafael, 4 anos depois (B-ato, F-2001) também o fez.


Mas essa conversa inicial tem o intuito apenas de ilustrar alguns pontos e gerar certa identidade com você, leitor. A conversa para valer vem agora.


Sobre a recém-partida terrena de meu pai, (Júlio Cortez, Berna; F69), escrevi alguns pequenos textos para familiares e amigos, inclusive da F-97. Nesta terça, 16/06, o Big Ben (F-97) sugeriu que eu os publicasse aqui. A proposta me pareceu inusitada, e ao mesmo tempo oportuna, considerando-se que um Esalqueano tem amizade com inúmeros colegas acadêmicos e também com muitos doutores e bixos de tantas outras turmas e gerações ao longo de sua vida.


O texto é uma homenagem a meu pai e também à amizade em geral, tão cultuada entre nós. Cada palavra carrega meu mais profundo carinho e respeito à minha família, a meus amigos e a todos os demais que estão dedicando alguns minutos de sua vida para esta leitura. E, em especial, à turma F-69 (espetacular 50 anos em 2019; grandes amizades e melhor amigo da vida de meu pai são desta turma, não é, Belluzo?) e aos ex-moradores da República Jacarepaguá, onde meu pai morou durante seu período de graduação.


Com 77 anos, meu pai, Júlio Cortez, (Berna; F69), natural de Bernardino de Campos-SP, cumpriu sua jornada terrena e partiu neste domingo, 14/06/2020, por volta das 22 h. Alguns dizem que, no momento desta passagem, há uma linha de chegada; outros, dizem que é uma linha de partida. Todos devem estar certos, e, provavelmente, esta linha tenha os dois significados, mudando de um para outro em questão de milésimos de segundo; afinal, a passada que cruza a linha de chegada é a mesma que inicia a partida da nova trajetória.


Júlio Cortez (Berna; F69) cruzou esta linha em casa, em Ourinhos-SP, literalmente nos braços da família. Não houve velório por nossa opção, apoiados fortemente pelo Covid 19. Uma prece,  oração, pensamento positivo ou uma recordação de seus bons momentos já aquecem a alma e o coração e se tornam a homenagem mais valiosa neste momento. Cremado em Botucatu, na quinta feira, 18/06, tão logo seja possível ele retornará às terras da Fazenda Taquari, em Uirapuru-GO, onde passou a maior parte dessa vida terrena, com amor e trabalho extremo.


Berna não se tornou um ícone do agronegócio, nem foi eleito agrônomo do ano; também não publicou textos relevantes em jornais importantes,  não fez e também viu nenhuma live. Quantos de nós não somos ou seremos assim, em pelo menos alguns desses pontos?  Por outro lado, conheço poucos que foram tão desbravadores, sonhadores  e corajosos como ele. Trabalhou no Bradesco por cerca de 10 anos, e largou o emprego com bom salário para se dedicar à propriedade da família, em Piraju-SP. Mas isso não bastava, e no início dos anos 80,  foi para o meio de um cerrado bruto em Uirapuru- GO;  levava de 15 a 18 h em viagens longas e desgastantes para percorrer o trecho de pouco menos de 1200 km, (ida e volta, 30 a 36 h). Fez este caminho rotineiramente até o último instante que seu corpo permitiu, em 2019.. Em pensamento, esteve lá até o dia de sua partida.  


Para aqueles que pensam que a vida de "fazendeiro/ proprietário rural" era o paraíso ou glamourosa, com casa-sede linda e toda estrutura, digo que estão muito enganados, ao menos neste caso. O lugar era parecido com meu pai: rústico, forte, intenso, mas também com suas amenidades: no período das águas, o cerrado mostra suas belezas, o pasto cresce viçoso, os riachos correm com água abundante; e nas secas, anuais e longas, a dureza do calor forte e do ar quente testam a resiliência da natureza, incluindo aí as pessoas.


Nos primeiros anos por lá, a dormida era na caçamba da caminhonete D-10 bege, debaixo de um barracão de terra batida, e que, aos poucos, foi se transformando em uma casa simples e básica.  A primeira vez em que eu o acompanhei nesta viagem, com meus 17 para 18 anos, levamos quase 2 dias para chegar à fazenda. Chegamos à noite, e ao passar pela porteira principal, a luz do farol bateu dentro de uma cozinha com chão de terra batida, onde, numa prateleira,  copos e utensílios de alumínio refletiram a luz e sinalizaram que ali havia algo mais do que um mero barracão. A caminhonete ficava na parte coberta e sem paredes laterais, e era o aposento do proprietário.


Outra opção de  estadia, utilizada de forma eventual e somente aos sábados, ou, no máximo, em esparsos sábados e domingos, era um hotel em Crixás, a 37 km da fazenda (37 km de estrada de terra, com buracos e com costelas de vaca, levavam mais de 1 h e um pula-pula danado).


Tive todas as experiências  de dormida nas vezes em que fui para lá: caçamba da D-10 (ou cabine), hotelzinho e casa simples.


A caçamba era a mais emocionante e muito melhor que o hotelzinho (que melhorou um pouco), pois dava todo o ar de rusticidade, de desbravamento, de aventura. Era algo para os valentes e fortes. Para mim, os 10 a 20 dias eram parte das férias e quando eu me cansava da precariedade, já estava de volta. Para meu pai, era a rotina e fazia parte do seu dia-a-dia.


O hotelzinho também tinha seu valor, pois dava um ar de integração social e volta à civilização, principalmente para quem ficava no mato e muito distante da família. De todo jeito, sempre era bom levar seu travesseiro e um lençol, para garantir um conforto mais ou menos. Hoje, já melhorou bastante e você pode se dar ao luxo de escolher um quarto com ar condicionado e frigobar.


Mas foi na casa-sede onde fiquei a maior parte das vezes que lá estive, nos anos seguintes. O antigo barracão, até hoje tão simples quanto a morada dos funcionários, passou a ser a casa do dono e a casa de hóspedes. Com dois quartinhos, dispensa, cozinha, banheiro, micro-sala e varanda, acomodava poucos móveis/ eletrodomésticos: uma geladeira (por muito tempo a gás), fogão, mesa, 3 camas, uma ou duas redes. Eé isso. Se quiser se sentar no sofá, ele está na varanda.Mas se quisesse assistir TV, poder ir à casa de algum amigo em Uirapuru (fica pertinho, menos de 2 km da fazenda).


O melhor lugar da casa é a varanda, que também serve de escritório e de "área gourmet". Ali, à luz da lua e de um lampião, fizemos panelões de doce de goiaba no fogo à lenha, iluminados pela lua e pelo céu maravilhosamente estrelado, e por um humilde e eficiente lampião. Alguns churrascos também aconteciam vez por outra, não posso negar... 


O único guarda-roupas da casa surgiu apenas em 2000: quando eu deixei meu primeiro trabalho, em General Salgado-SP, na Bellman (naquela época a empresa era do Krma; F89 e do Forfé; F89), e fui trabalhar em Brasília, com meu tio Toninho (Morcego; F77); juntei tudo que pude e coloquei, organizadamente, em meu fiat Uno. Obviamente que não caberia um guarda-roupas; meu pai passou em casa e o levou para a fazenda.


Importante mencionar a infraestrutura do local, por longos anos: a energia era fornecida  por lampiões; depois, por um gerador à gasolina, até a descoberta da energia elétrica chegar. E para telefonar, havia o famoso serviço de telecomunicações: bastava ir até a TELEGOIÁS (ou algo assim, similar à antiga TELESP) e pedir para a telefonista fazer sua ligação desejada, assim que houvesse uma cabine disponível. Ou você também poderia comprar fichas e utilizar alguns dos orelhões que funcionavam àquela época.


É Incrível como essa geração dos anos 60-70 tem tanta gente porreta, força-bruta pronta e disposta a enfrentar qualquer adversidade. Mas também, não poderia ser diferente: grande parte dela foi criada com o que era essencial nos anos 50-60, o que é muito diferente do essencial ou básico dos tempos atuais ou mesmo do meu tempo de criança/adolescente (celular é essencial; ar condicionado é essencial, transporte para a escola é essencial; fast-food é essencial - sem qualquer julgamento de valor, pois cada época tem suas peculiaridades).


Assim, foi lá na Fazenda Taquari, em Uirapuru-GO (cidadezinha conhecida localmente como  bugiganga) que meu pai viveu grande parte de suas alegrias e de suas angústias, quase sempre sozinho na casa-sede e muito longe fisicamente dos familiares. Tinha uma dieta à base de leite do curral, banana e mamão do quintal da casa, e vez por outra assava uma carne e bebia uma cervejinha naquele calor de doer a pele...


Sem papas na língua e sem paciência para firulas, era também brincalhão, muito franco e correto em suas atitudes; fez poucos, mas bons amigos por lá. E seu jeitão o tornou conhecido por toda cidadezinha, onde muitos se referiam a ele como Julião, o "forasteiro de SP que veio parar na bugiganga".


Por fim, nessa parte derradeira do texto,  transmito alguns sentimentos e percepções deste momento difícil e inevitável pelo qual muitos já passaram ou passarão. Tais sentimentos também se aplicam, como poderão notar,  a tantos outros momentos muito menos difíceis de nossas vidas.


Hoje, com o peito apertado, seguimos em frente. Não há volta no tempo, não há tempo para arrependimentos. Imagino que as sensações de perda e de saudades surgirão em diversas ocasiões até eu cruzar a minha linha de chegada e de partida. Seja como for, algumas coisas me reconfortam. Uma delas é saber que meu pai viveu a vida com a intensidade possível literalmente até seu último suspiro; que lutou pelos seus ideais e que cumpriu sua missão com muita determinação, honestidade e honradez. Outro ponto é que nestas últimas três semanas vivi diariamente com meu pai, e mesmo sendo um período delicado, exaustivo  e de muitos cuidados, este período final de convivência me acalentou a alma.


Boas conversas, passagens simples e memoráveis, carinho, admiração... broncas que tomei, pontos de discordância que tivemos... mas, acima de tudo, confiança incondicional, respeito e amor, sempre. Tudo junto e misturado.  


Ele foi perfeito? Claro que não! Teve suas falhas e cometeu seus erros,  assim como eu, você, nossos amigos e familiares. Mas ficou o ensinamento de viver com força e empolgação pela vida, mesmo sendo cético de tantas coisas. Foi um homem rústico, bronco, raiz ao extremo e....com coração de manteiga (ou de nutella, para as gerações mais novas). Não me recordo e não presenciei nenhuma atitude desleal ou desonesta de sua parte. Pelo contrário: procurava sempre dar o exemplo e fazer o justo. Assim é meu pai; assim são alguns bons amigos que temos.


Percebam, vocês, que ao deixar para ligar depois, visitar depois, conversar depois,  perdem-se oportunidades que nunca voltarão. É evidente que não é possível fazer tudo, mas com uma certa dedicação, muito não ficará para trás. Não há obrigatoriedade de se viver em velocidade máxima, mas é indispensável imprimir a intensidade necessária às situações e oportunidades que surgem, de modo que possamos cultivar e aprimorar  nossas relações, o que, impreterivelmente, trará boas histórias e passagens para recordar, celebrar e compartilhar.

 

Rodrigo Beccheri Cortez  (Tim Tones; F97)  Ex morador da República Picareta

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